Como ilustradora, acredito que a
ilustração em geral não visa apenas decorar um texto ou repetir o conteúdo
através de imagens. Mais do que isso, tem como objetivo expressar sentimentos,
elucidar aquilo que está nas entrelinhas, provocar até, entre outras funções. ‘Tanto é vero’ que existem livros sem
texto e a ilustração fala por si. Seu objetivo não é retratar o mundo
exatamente como ele é, mas dar ao leitor a possibilidade de questionar o texto,
relacionar o mesmo à sua vida, fazer pensar, suscitar ideias, acompanhar e
complementar o enredo. Se pensarmos que toda ilustração deve apenas retratar a
realidade, acho não teríamos mais trabalho para ilustradores, mas para fotógrafos.
É claro que existem os ilustradores que trabalham com imagens hiper-realistas (que acho fantásticas!),
cujo objetivo é retratar o objeto exatamente como ele é. Mas neste caso, vamos falar de algo diferente. A ilustração é muito importante num livro infantil, porque muitas vezes a criança ainda não lê o texto, focando só nas imagens.
Nem sempre o ilustrador é
considerado um autor, mas apenas um prestador de serviço. Isso é um equívoco,
pois o ilustrador é o autor da imagem e deveria ser até considerado co-autor de
um livro infantil. Aqui no Brasil, infelizmente, o ilustrador geralmente não
tem o mesmo ‘status’ de um escritor. O escritor é visto como o verdadeiro autor
do livro. Isso não acontece na Itália. Lá os dois são considerados autores e
ambos os nomes aparecem na capa com a mesma fonte e também com o mesmo tamanho
de fonte. E aqui ainda encontramos editores que se recusam a colocar o nome do
ilustrador na capa a não ser que esteja previsto em contrato e ainda se dão o
direito de modificar a sua ilustração sem lhe consultar. Infelizmente no nosso
país o ilustrador ainda é tratado meramente como um ‘complementador’ do texto. Não
estou dizendo que a ilustração é mais importante que o texto, mas que ambos ‘contam’ a
história sob dois pontos de vista. É importante lembrar, porém, que devemos tomar
cuidado para não criar uma ilustração que contradiga o que o texto está
dizendo.
Como falei no post anterior, tomei
a liberdade de ilustrar a personagem Formigarra com quatro patas. Por que fiz
isso? A formiga que morreu de enfarte formigante no livro era a formiga comum,
trabalhadeira, que não tinha nenhum momento de descanso ou lazer. O meu
objetivo era poder diferenciar a formiga da Formigarra. A formiga comum está
retratada sobre as seis patas e leva o alimento na ‘garrinha’. Já a Formigarra,
criação de Gloria Kirinus, continua trabalhadeira, mas agora vê o mundo de
outra forma, tendo seus momentos de ‘ócio criativo’. Retratada sempre em pé,
está ‘humanizada’, visto que nós, seres humanos, temos somente quatro ‘patas’
e, no entanto, somos tidos como seres 'superiores' aos demais animais, ditos
irracionais. Ela é mais que uma simples formiga, é uma formiga 2.0, sofreu uma
transformação, uma metamorfose, é quem une o ‘útil ao agradável’, utilizando
até a escalada para conseguir comida e o carrinho de rolimã para arar a terra.
Não lhe são mais necessárias seis patas, pois o ‘pesado fardo’ que ela
carregava não mais existe. Mais do que usar suas seis patas, agora utiliza o
cérebro para resolver seus dilemas. Não deixou de ser trabalhadeira, mas buscou
outras alternativas para sua própria vida. É o que podemos chamar de ‘licença
poética’ da ilustração.
Diferentemente do coco na bananeira, ressalto que, se o ilustrador tem
a intenção de modificar algo do real, deve deixar bem claro que o fez. Só me
dei o direito de eliminar duas pernas da Formigarra porque fica evidente para
quem lê o livro de que a formiga comum tem seis patas e está retratada como
tal. Ou seja, o leitor tem a possibilidade de ver os dois personagens e questionar o porquê da diferença. E eu pergunto: quando,
na vida real, uma cigarra tocaria uma viola e uma formiga voaria de asa-delta?
Isso não está escrito no texto, mas enfatiza o conteúdo não declarado na
história.
Formigarra/Cigamiga é um livro maravilhoso que foi escrito há muitos anos mas que trata de um assunto muito atual. O que a escritora da Formigarra/Cigamiga procura evidenciar é que o indivíduo não precisa ser
só formiga trabalhadeira ou só cigarra seresteira, mas um misto de ambos, ou
seja, enfatiza a busca do equilíbrio entre trabalho e lazer, tão necessária ao bem estar
humano. E agora, tanto a Formigarra quanto a Cigamiga passam seus dias ‘tricotando’, trocando ideias, lembrando daquele tempo em que eram apenas cigarra e formiga ...
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